Eu tinha entre quatro e cinco anos. Mas não tenho certeza exata da idade. Como toda criança da década de sessenta, brincava com as coisas mais comuns da época. Pião. Bolinha de gude. Taco (também chamado de bets). Coisas simples, mas que entretinham e divertiam.
E foi brincando em casa, com bolinhas de gude, sozinho, deitado na cama, que aconteceu. Uma bolinha caiu no chão e, no ato de descer da cama para pegar, bati o dedinho do pé esquerdo no chão. Pronto. Estava quebrado.
Eu já tinha visto gente que tinha quebrado algum osso e sabia que isso era sinônimo de gesso e um monte de coisa escrita nele. Até com o gesso a gente se divertia. Na verdade, a gente brincava com qualquer coisa! Bastava estar à mão.
Mas, com o dedinho quebrado, aprendi algo novo: mesmo ele sendo tão pequeno e sem que eu entendesse qual era a sua função no corpo, descobri que o corpo todo tinha virado refém dele. Não podia mais sair para jogar bets, nem podia jogar pião, porque não podia apoiar o pé no chão. Bolinha de gude Nem pensar! Jogar bola? Também não! Eu não entendia aquilo. Como algo tão pequeno podia causar tanto transtorno!
Só depois de adulto aprendi que a compreensão que se tem de como as pessoas são, ou seja, da antropologia, e que entre as possibilidades de explicar o ser humano há uma que separa o corpo do espírito e da alma. Mas a minha experiência de criança dizia o contrário. Meu corpo, alma e espírito tinham virado reféns do dedinho do pé esquerdo. Eu não podia deixar o dedinho em casa e ir brincar na rua. Ainda que o resto do meu corpo, meu espírito e alma quisessem…
Com o tempo, aprendi também que na perspectiva semita do ser humano não se pode dividir a inteireza do que é uma pessoa. Toque em seu corpo, e sua alma e espírito serão afetados. O mesmo acontece com algo que afete a alma (psiquê) ou o espírito. A totalidade é sempre afetada. Necessariamente.
Outra coisa que me espanta é que, quando olho para esse tempo, a impressão que tinha é de que os dias duravam uma eternidade. Como eu era pequeno e ainda não tinha aprendido a ler, só descobri tempos depois que havia uma forma de amenizar aquele tempo de recuperação: a leitura. Se soubesse ler, eu teria saído daquela cama para experimentar mundos e tempos mágicos nas páginas dos livros! Mas não foi o que aconteceu. Os dias eram longos e o dedinho continuava me prendendo.
A única coisa que ficou na lembrança daquele período acamado foi a promessa de que eu poderia tomar sorvete se não saísse da cama. Sim, eu sei que sorvete era pra quem tinha feito operação de amídala. Mas foi a promessa que me fizeram. E cumpriram.
O recente período de isolamento social, fruto da pandemia de Covid-19, me trouxe essa lembrança. Sorte que agora eu já sei ler!